30.7.04

três em uma

Sonhei que eu era três. Uma fugia correndo, saltitante. Uma ficava, permanecia feliz. E a terceira, fechada dentro de uma caixa, não conseguia respirar. Acordei sem ar. Minha maternidade sufocada.

a meia

A meia é um negócio importante. Dentro do sapato, em cima da pele do pé. Preta, se o sapato for preto, e bem esticada. Opaca, não deve ser translúcida. Forma, assim, em contraste com a graxa e o brilho do objeto que a envolve, uma composição. Cobre dignamente os dedos compridos e o joanete, enfim, os ossos e músculos que sustentam um corpo no espaço. A base da estrutura. Pode ajudar a definir a consistência de um pé chato, cujas pequenas células ósseas formadoras do colo insistem em tocar o solo. Impulso de agarrar o chão, descer em direção ao centro da Terra que ferve, eternamente. Neutraliza o emaranhado das cores do sangue, da gordura, da unha, dos calos, das dores físicas, do cansaço da tentativa de jogar futebol ou da dança, do salto alto. Silencia as agudezas da alma, que sobem pela coluna e chegam ao pescoço. Tranqüiliza as sinapses dos neurônios. Uma meia preta pode levar à levitação. Uma meia preta no Japão.

Numa peça alemã, as crianças vestidas de rosa, tudo cor de rosa, os sapatos também, só a meia não. A meia preta, sinistra. Já num fulano francês de cabeça raspada, asseado, tudo preto. E a meia também, principalmente. Meias vermelhas existem, no plural, mas são meias de ocasião, de exceção. Não compõem, ao contrário, chamam atenção. Deixam o pé crispado, fazem doer as cutículas. A meia preta não. Esta é apaziguadora, é calmaria do mar em terra firme, é silêncio do vácuo longe da atmosfera. É apolítica, atemporal, irracional sem ser desesperada. É a ausência presente do nada. A meia preta é um abismo possível. Uma abertura, uma falha, uma fenda. Em contato com as partes do corpo, projetadas e desenhadas na planta, canaliza a vida como o braço negro de um rio existente. Sempre existiu e sempre existirá.

26.7.04

e ela ficou lá

E ela ficou lá, sozinha. Olhou para os lados, respirou bem devagar, tentou ficar quieta. O estômago comendo por dentro. Ela queria mesmo ficar sozinha. Queria ver como é ficar no vazio, sentir o vácuo dentro da casa, a leveza do nada, queria ver o que sobraria.

Medo? Nem tanto. Talvez um pouco de angústia, mas bem pouco. Sensações novas, suspensão no espaço.

Para se ficar só é preciso ver a cara no espelho, não ter a quem prestar contas, não ter com quem discutir, não ter quem beijar. Ficar só significa se sustentar, descobrir, ver o que se faz por si mesmo, sem os outros. Relações viciadas…

Para se ficar só é preciso ficar só no mesmo. No diferente, não vale. Muitas coisas novas às quais se ajustar: dispersão. O mesmo é o mesmo, é o conhecido e você lá, no conhecido, desconhecido.

Para se ficar só é preciso ter coragem. Para se ficar só é preciso querer ficar junto, nem que seja só um pouco, abrir mão.
Ficar só é uma perda, um ganho.

E ela ficou lá, sozinha. Sabendo que poderia ter sido de outro jeito, sabendo que poderia ter ido junto, sabendo que a escolha havia sido sua. Sentiu-se estranha. À medida que o tempo correu, sentiu-se correta. A escolha havia sido acertada.

Ela sobrou e continuou. Ela existe. Sozinha.

24.7.04

pedaços de gente

Angélica, sobrinha do Ricardo, foi com a mãe uma certa tarde estender as roupas sobre a grama para quará-las. No dia seguinte, lá pela mesma hora, perguntou:
– Mãe, a gente não vai vestir a grama hoje?

Sofiota, viajando com a avó para Santos queria ver desenhos na TV.
Como o apê de São Vicente não tem cabo, só dava para ver os canais convencionais e não havia cartoon na hora, só o funeral da princesa Diana. Não teve dúvidas... Sentou-se e assistiu a tudo como se fosse a história da Branca de Neve, chamando a avó para ver o príncipe de vez em quando. A certa altura, perguntou:
– Mas vó, o príncipe não vai beijar ela?

Cláudia foi com o Matias a pé pegar dinheiro no Banco 24 horas no domingo. Na volta, um assaltante de bicicleta os abordou e roubou todo o dinheiro que estava no bolso dela. No fim do assalto, o Matias perguntou:
– Você é que é o ladrão?

De Sofiota (atuais 9) para Dantesco (ainda com 7):
– Quando você for ficar com uma menina, vai ter que usar camisinha, viu?
Resposta:
– Eeeeeeca! Urrrrrrgh! Blaahhhhhhh!

23.7.04

traum

Fui com ela ao tal do mestre indiano, que mais parecia chinês. Mistura de orientes. Na verdade ela já estava decidida, mas eu ainda andava meio resistente. A idéia de ter seis dedos no pé me parecia absurda. O velho nos atendeu rapidamente e começou seu trabalho. Ela não pareceu sentir dor, não pareceu sentir nada. Só estava bastante curiosa em relação ao resultado. Eu, pelo contrário, me sentia cada vez pior. Um mal-estar profundo começou a tomar conta de meu estômago, enjôo, náusea. Com extrema habilidade, o oriental magricela executou seu trabalho e partiu os dedões em dois, em quatro. Seis dedos compridos, três para um lado, três para o outro. E muito bem afinados nas pontas. O que aquele velho havia feito? Ela se sentia bem feliz e eu não podia nem olhar para baixo. Decididamente não queria a mesma experiência. Freak, freak, freak.

21.7.04

diferenças

As mulheres têm um corpo.
Os homens têm um pinto.

garganta

A garganta sangrando, feito Santa Cecília. O sangue quente borbulhando na frente dos olhos. Tudo muito vermelho, quase bordô. Tontura, a escuridão lateral comendo o campo de visão rapidamente. Os braços se agitando, as mãos crispadas tentando alcançar alguém ou alguma coisa. O desespero, a impossibilidade da fala. O corte. Sangue, muito sangue no chão, escorrendo como lava pela pele do pescoço. Convulsão. Não conseguia falar, não conseguia gritar, não conseguia...

Acordou com as mãos na garganta. Respiração ofegante, suor, o cheiro da camiseta ensopada. Nojo. Tempestades, terremotos, trovões. Mesmo pesadelo pela décima quinta vez... puta que o pariu! Banheiro... banheiro, pelo amor de Deus. Água na cara, água na boca, água no pescoço. O corpo todo. Sentou na privada, olhando para o chão. No piso branco, os fios de cabelo dele, o tapete sujo, o vaso sem massa dos lados. Precisava consertar essa merda, bosta. Respiração se acalmando. Escovar os dentes. O cheiro da incrustação, o fio dental. Tinha que ir ao dentista de novo.

o corpo no cérebro

(...) algumas partes do cérebro são livres para perambular pelo mundo e, ao fazê-lo, mapear qualquer objeto que a estrutura do organismo lhes permita mapear. Em contrapartida, outras partes do cérebro, as que representam o próprio estado do organismo, não são livres para perambular. Elas estão presas. Não podem mapear nada além do corpo, e fazem isso com mapas em grande medida preestabelecidos. São a audiência cativa do corpo, e estão à mercê da mesmice dinâmica deste.
Antônio Damásio, O mistério da consciência.