29.10.04

O vô

Bisavô só conheci um. Pai da vó, mãe da mãe. Baixinho atarracado, morava com a minha tia Lóla. Mistura de índio com catequisadora portuguesa, tinha as sete ervas protetoras plantadas no quintal e mais algumas outras tantas, just in case. Seu cheiro era de fumo de corda, que ele ficava escarafunchando com uma faquinha, enrolando na palhinha e pitando durante o dia. Quando dava, minha mãe levava a gente lá pra ele benzer. Daí sentávamos na cama e ele ficava falando palavras que não entendíamos e fazendo o sinal da cruz na nossa cabeça, na testa e no peito, outra vez na cabeça, na testa e no peito... Passavam-se vidas. Murmúrios de tribos católicas.

27.10.04

Vó Maria

Minha bisa grande, por parte de avô paterno. Rosto grande, orelhas grandes, mãos grandes. Pelo menos é assim que me lembro dela. Professora, muitos filhos e duas filhas, trouxe todos para Sampa, para que estudassem. Adorava essa cidade e virou são paulina (ai, ai, ai...). O marido, dentista, morreu de tombo da cama. Dela me lembro do sagu, absoluto, das visitas que fazíamos e nas quais assitíamos à tevê, da cadeira de balanço na qual sempre se sentava e das colchas de crochê coloridas que iam tomando conta do seu colo. Começou a viajar pelo mundo com 60 e dizia que nunca era tarde pra começar nada. Minha coleção do Monteiro Lobato, ganhei dela. Foi operada da vesícula, eu acho, e acabou pegando uma infecção hospitalar. Pouco antes de morrer se sentiu muito mal. Minha tia-avó, Ita, já ia correr pra chamar a ambulância, mas ela disse que não precisava: tava na hora. Na minha última visita ela já tava bem doente, mas fez minha tia ajudá-la a sair da cama e a se sentar na cadeira de balanço: era assim que ela queria que a gente lembrasse dela. Funcionou, Vó!

26.10.04

Vó Luíza

A gente chegava na casa da Vó Ada e fugia da Vó Luíza. Mas pelas orelhas, tínhamos que a cumprimentar. Minha bisavó não gostava de tomar banho. Se escondia na hora do banheiro e era até engraçado. Cheirava a velho, com os cabelinhos enroscados num coquinho, dava um trabalhão pra minha avó. Andava pela casa, baixinha e magricela, e, pelo que me lembro, não dizia coisa com coisa. Já peguei a velhinha variando. Mas, quando o crack da bolsa de 29 detonou a fortuna do bisavô e eles ficaram pobres da noite para o dia, foi ela quem sobreviveu ao ataque cardíaco do marido. Sem um puto no bolso, transformou a mansão em pensão para moças de bem e sustentou a filharada toda fazendo comida e servindo na porcelana chique, presente de casamento. Fomos visitá-la num sanatório para velhinhos bem tratados, minha última lembrança dela. Corria pelos corredores fugindo da gente. Acho que quando ela viu que tinha cumprido suas obrigações pensou: agora eu relaxo. Apesar da aparência austera, suas corridas e fugas eram na verdade risadas e gargalhadas. Ela estava era brincando de pegar...

punção da pulsão

Deitada no colo do médico, como se fosse uma boneca de pano de tamanho natural, daquelas com as quais se dança caipirescamente, pés enroscados nos sapatos, sofreria uma punção no pulmão. Mas a palavra que surgia era pulsão: uma pulsão no pulmão. Agulhas de vários tamanhos, com seringas e objetos de operações estranhas. Mistura de dois movimentos. A punção que punge, fura e retira o líquido, o pus, seja lá o que for, ajuda a diagnosticar, a curar. A pulsão que impele, pressiona, movimenta. Para onde me leva minha respiração?

24.10.04

flash do flat

Respira, respira, respira... Curto, grosso, filho-da-puta! Saiu para fumar no terraço. Ainda bem. Ele fica ali, olhando a garoa que cai do céu nublado, como se nada tivesse sido dito, nada tivesse sido sentido. E a bosta da TV ligada nessa encrenca de Interlagos. Quando ela era pequena, gostava do barulho dos carros na pista da fórmula 1. Tinha até um macacão, era fã do Fitipaldi. Até hoje ainda gosta de dirigir, cortar, desviar, enfiar o pé. Mas ele tá de sacanagem. Só ligou a porra da TV pra não ter que falar. E o problema das mulheres é que elas não gostam de ouvir? É mesmo? QUEM é que gosta de ouvir? Essas pessoas são sempre menosprezadas. Quem ouve entrega os pontos, não defende suas posições, não sabe se fazer ouvir etc. Conversas pra boi dormir. Na new society, todo mundo só quer saber de botar pra fora, ninguém guarda nada, ninguém entende o que não bate com suas crenças, só se enxerga no outro o que se quer para si mesmo. E aí: que troca é possível desse jeito? Acabou o cigarrinho, é? Então engole um cockpit!

22.10.04

conto de natal

Era uma família. Uns três filhos, a mãe e o pai. E mais uma amiga dos meninos. Haviam combinado que, para escapar, cometeriam suicídio coletivo. Algum veneno na comida. Uma doença horrorosa os definharia, se a atitude não fosse tomada. A casa aconchegante, sofás largos, vestidos de vermelho e verde, clima natalino de festa no ar. Todos bem vestidos, com roupas de inverno, a lareira acesa, velinhas e luzinhas especiais. Calor humano, calor do fogo, quentura da união. Felizes, vão para a mesa jantar. A visitante então formula uma reflexão: e se a doença não se concretizasse? Enquanto degustavam as iguarias, conversam sobre as chances de sobrevivência. O rapaz certamente não as teria, seu estado enfermo já era adiantado, embora não fosse visível seu declínio físico. E os outros? A mãe comenta, então, que a alface havia sido envenenada na horta e que a morte era questão de minutos. Mas uma esperança ainda existia: alguns poderiam resistir ao veneno. Ajudando o rapaz a se deslocar para a frente da lareira, todos tomam seu vinho e comem doces, sentados ali, esperando a morte chegar. Esperando a morte passar.
E se Walter Benjamin tivesse percebido que o exército que se aproximava era dos aliados e não dos nazistas?

21.10.04

vem ursinho, vem...

Pois é... Então eu ia fazer um documentário sobre uma viagem minha com um urso através do território americano. Minha única dúvida era se eu ia me dar bem com o tal urso. Quer dizer... Também me passava pela cabeça a idéia de que, talvez, eu devesse fazer algo mais brasileiro, para conseguir captar recursos com a lei Rouanet. Será?
Mais pra frente, eu e Guilherme procurávamos no Google o nome do diretor da nova novela das sete, "Flerte de Verão", porque o cara devia estar puto com a campanha política e devia ter algo a dizer... Pra quem? Não me pergunte. Com um urso desses rodando comigo pelas estradas norte-americanas, o sonho já estava pra lá de estranho.
E viva o cinema nacional!!!

19.10.04

Mulheres de AntenAs

É chegado o plasmódio de nossa existência!

By Flake, of course...

let us believe

A origem da superstição, que a alimenta e a conserva, é, pois, o medo. A religião, seu fardo. A tirania teológica e política, seu preço.
Onde foi que eu li isso?

lembrança

Um corpo na janela escura
Peso branco de vinho
rosa roda cabeça

Pensamentos tortuosos...
Sapiência maldita
Ou pura intuição

No fundo,
Sei que é só paixão
E mais nada

6.10.04

a clínica

A clínica de estética que funciona num dos apartamentos do flat aqui em frente fica acesa à noite. Mulheres com faixas nos cabelos, mulheres sentadas esperando a vez, mulheres deitadas na maca, mulheres ao celular. Grandes luzes especiais, esteticistas vestidas de branco, um grande abajur cilíndrico de cor amarelada, muitas toalhas pra lá e pra cá. A limpeza do ambiente, a limpeza dos rostos, a limpeza da alma. Espelhos e lentes de aumento. Lentes que projetam os poros dos espíritos futuros. Mãos que tentam retardar o envelhecimento, cremes que servem para atenuar as marcas da vida. Ou talvez simplesmente uma limpezinha básica. O que vai ser?

5.10.04

barroco português

Desmaios e Gemidos, da série Enganos do Bosque, escritos com “notável senso do ritmo lírico” por Sóror Maria do Céu em finais do século XVII (presa em algum convento português). Êita que o gênero já passou por muita coisa!

O Amor... Ah, o Amor...

O Amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias.
Uma confusão de bocas,
uma batalha de veias,
um reboliço de ancas,
quem diz outra coisa, é besta.

Gregório de Matos e Guerra, séc. XVII

4.10.04

esse é pra ser lido

Sabe, ainda me dá raiva às vezes. Não sei muito bem por quê. E eu não sei o que fazer com isso. Tenho vontade de morder sua boca e apertar o seu corpo. Todo. Tenho vontade de dizer coisas que não saem da minha boca. Tenho dúvidas que gostaria de gritar, tenho vontades que gostaria de ver realizadas. Tenho um berro que fica entalado, que nem a história do Macunaíma para aquela professora de BH. Fico engolida por Gregório e perdida nos vieirais e os críticos ficam falando na minha cabeça, mas quando percebo, estou em outro lugar. Estou vendo outras cenas. Estou vivendo outros sentimentos. Já não sei mais se atrapalha. Acho que é isso mesmo, acho que é assim mesmo. Acho que eu fiquei tanto tempo perdida de mim e de tudo que agora ponho os pés no chão e chuto a mesa enquanto comemos e as sensações ficam acesas. Se tenho sono, durmo. Se tenho idéias, trabalho. Se tenho tempo, leio. Se tenho dor...

E aí não é preciso cuidado. Não é preciso analisar psicanaliticamente. Não é preciso decifrar nem entender nem ler nem escutar. Só é preciso aceitar e acolher. É preciso receber e aconchegar. É preciso, sobretudo, amar. É isso aí: é preciso amar.